FILOSOFIA CLÍNICA - A FILOSOFIA COMO INSTRUMENTO PSICOTERÁPICO

Márcio de Carvalho Bitencourt

 RESUMO
 
Nesse artigo será apresentada a Filosofia Clínica e sua importância na sociedade atual. Por ser uma terapia incipiente em sua metodologia e teoria, serão vistos, de forma geral, suas ferramentas e relações com alguns aspectos e conceitos filosóficos. O homem moderno se encontra em um delta de opções quanto a seu destino e futuro, seja de maneira individual ou planetária. Essas opções lhe são apresentadas em um contexto de crises e incertezas, que exigem de sua estrutura psicoemocional uma têmpera que nem sempre ele está equipado para responder tal demanda. Advêm, não raras vezes, angústias e sofrimentos subjetivos paralisantes. Outras questões, de ordem imediata e idiossincrática, da mesma forma penalizam e urge solução. É nesse contexto que a Filosofia Clínica propõe, dentro da representação que o sujeito faz do mundo, pela radicalidade filosófica, auxílio que possa devolver ao sujeito autonomia e equipamento interior com o qual ele lide de maneira razoável com seu contexto e si mesmo. Veremos, de forma conceitual, outras duas opções para o mesmo aspecto de situações-limite do homem em sua lida subjetiva e objetiva: a fundamentação psicanalítica e proposta da religião de massa. Este confrontamento tem o objetivo, pelo contraste, de demonstrar as particularidades pelas quais a Filosofia Clínica entende o homem como um todo e suas singularidades. Ao fim desse artigo espera-se contribuir para a abertura que a Filosofia Clínica oferece no campo da psicoterapia, assim como oferecer uma visão de seu processo que revele o quanto da filosofia acadêmica pode ser útil para uma sociedade mais humana. Essa contribuição está não só no aspecto psicoterápico, mas também no antropológico, à medida que um conjunto de características peculiares ao homem venha somar para sua melhor compreensão.

PALAVRAS-CHAVE: Filosofia Clínica; Situação-limite; Psicoterapia; Filosofia.

INTRODUÇÃO

    Objetivando demonstrar que a filosofia acadêmica tem como função tornar a vida e suas contradições intrínsecas superáveis, ao menos uma experiência que necessariamente não precisa nos dobrar sob o peso de suas demandas e pressões, a Filosofia Clínica se apresenta como uma aplicação dos conceitos e categorias filosóficas para dar suporte às situações de angústias por que passa o homem contemporâneo. De fato, desde a Antiguidade a filosofia era considerada, por muito dos mestres que a pensavam, como um remédio para a alma. O mestre Epicuro já sinalizava que o filosofar era um caminho para a conquista da saúde da alma:
  • Nunca se  protele  o  filosofar  quando se é jovem, nem  se canse o  fazê-lo  quando se é velho, pois ninguém é jamais pouco maduro nem demasiado maduro para conquistar a saúde da alma. E quem diz que a hora de filosofar ainda não chegou ou já passou assemelha-se ao que diz que ainda não chegou ou já passou a hora de ser feliz. (EPICURO, 2005, p 97).

    Para fundamentar a proposta da Filosofia Clínica e seus aspectos centrais, se valerá de pesquisa e estudos bibliográficos, com o fito de caracterizar que já se tem bases suficiente-mente sólidas para credibilizá-la como uma importante opção no trato dos males da vida subjetiva dos sujeitos que seguem, ou paralisam, digladiando uma peleja que muitas vezes parece-lhes inglória. Questões como as incertezas sociais e políticas, que desdobram na falta de perspectivas para os sujeitos e seus projetos de vida; relacionamento interpessoal problemático; conflitos subjetivos e metafísicos de várias ordens são apenas algumas das situações que afligem os indivíduos e que são temas importantes para uma reflexão filosófica, com fito a equacionalização e racionalização de apoderamento pelos sujeitos. Qualitativamente veremos que os possíveis casos abordados nesta clínica, são passíveis de verificação quando o partilhante (pessoa que procura o filósofo clínico, que partilha suas questões; cliente) alcança, interiormente, em um grau satisfatório, força e equilíbrio ao lidar com aquelas questões que inicialmente lhe angustiavam.
    Pela natureza do tema e riqueza do que a Filosofia Clínica propõe, envidar-se-á esforços para que o assunto da clínica filosófica fique compreensível e não se perca sua preciosidade, não obstante um artigo ser insuficiente para detalhar as filigranas que esta filosofia clínica enseja. Para isso, abordaremos os aspectos pontuais que representam de maneira substantiva os métodos e as bases teóricas que esta técnica, porém não tecnicista, possibilita.
    Entende-se bastante interessante, para um esclarecimento satisfatório e uma melhor compreensão de seu universo e arcabouço teórico, abordar o tema em comparação com outras práticas de propostas de ‘tratamento’ das angústias e sofrimentos de indivíduos. Por exemplo, a Psicanálise e a alternativa das religiões de massa são dois momentos de contrastes úteis para isso. A primeira por ser uma teoria organizada e objeto de muitas reflexões filosóficas desde seu surgimento; a segunda, por alcançar grande parte das massas, não podendo pagar tratamentos convencionais recorrem a ela como tábua de salvação.
    No presente artigo não se pretende um aprofundamento da Psicanálise ou Religião, muito embora se verá alguns de seus fundamentos, para que o pensamento crítico possa traçar alguma valoração de seus aspectos em comparação à clínica filosófica. Com isso, se pretende visualizar seu diferencial pelo recorte filosófico do homem enquanto ser que a filosofia entende como sendo aquele que pode-ser-sempre-mais, por estar em um devir permanente, e por isso em construção de possibilidades extraordinárias.
    Situando o homem em seu contexto histórico-social, o vemos em uma contemporaneidade eivada de perplexidades e incertezas presentes e futuras. Muito se tem dito que, pelo malogro das esperanças que a modernidade, a partir de Descartes, frustrou projetos e utopias de um mundo melhor que atendesse os anseios humanos, indivíduos, e mesmo sociedades inteiras, se viram órfãos e desiludidos de uma vida boa e feliz. Ser moderno é viver paradoxos. Na conta dessa crise poderíamos acrescentar falências econômicas e políticas, desagregação familiar, egocentrismo e hedonismo exacerbados, insegurança paralisante e, pior, ausência de perspectiva ou frustração dela. São questões objetivas e subjetivas de nosso tempo. A lista é muito, muito maior.
    Em vista de um cenário assim adverso, não é de se estranhar um enorme volume de sofrimento subjetivo, que apela por alívio e solução. Dentro desse cenário se insere as proposições e tentativas de dar ao homem uma “pílula” que mitigue sua dor. Em busca de cessar a pressão em seu conjunto emocional e psicológico, as pessoas recorrem a diversas sugestões e promessas, muitas vezes sem usar o pensamento crítico; aliás, sob pressão é comum para o homem mediano não exercer o poder de seu pensamento crítico valorativo. A seguir veremos três propostas que pretendem oferecer superação das angústias e situações-limite.

A RELIGIÃO UNIFORMIZANDO SOLUÇÃO

   O fenômeno da religião, em diferentes estratégias e denominações, mormente naquelas conhecidas como televangêlicas, centram seus discursos nas questões imediatas da vida temporal que faz sofrer o homem. Por estar fundamentada em dogmas e ‘verdades reveladas’, suas soluções para as questões de origem social e histórica desacertam quanto ao ‘remédio’ para aqueles males, cuja origem é de desarmonia entre subjetivo e objetivo das vivências dos indivíduos. O que se observa, nesse contexto, é um uso meramente utilitarista da religiosidade humana, com o objetivo de manter o rebanho ‘fiel’ e dizimista de um poder que mais se assemelha à política do que uma denominação de fé. Frisa-se que não está em questão o importante valor legítimo da busca do homem por uma metafísica que sirva de suporte a suas necessidades espirituais, e nisso a religião tem um papel importante quando trata com profundidade e seriedade de seu objeto, as indagações transcendentais. Muito embora as religiões de massa prometam solucionar os dramas de sua clientela, o que se observa é um entorpecimento que camufla os efeitos tornando as causas inatingidas, beneficiando todo o ciclo alienante que sustenta esse mercado.
   Corrobora para essa afirmação uma recente notícia sobre um pastor que possui fazenda no valor de cinquenta milhões de reais (R$ 50.000.000,00)! Conforme noticiado em: (http://veja.abril.com.br/noticia/brasil/o-diabo-entra-na-briga-entre-edir-macedo-e-valdemiro. )Ele, porém, acumulou tal patrimônio em sua recente ‘carreira’ de líder espiritual. Há também outros que possuem de televisão a patrimônio, amealhados com contribuições dos aflitos. O que possibilita tais excessos é a fórmula que associa indivíduos em busca de bálsamo para seus sofrimentos subjetivos e um dogma incansavelmente pregado, que define o homem como um ser impotente e moralmente frágil, e que é culpado, não lhe restando salvação fora de um esquema que não o liberta e o faz dependente de um iluminado que intercede por ele.
    Deixa-se claro, reiterando, que os valores legítimos da Religião não estão em questionamento. O que se coloca em perspectiva é o uso ilegítimo e pretensioso de tratar sofrimentos existenciais e individuais com uma fraseologia uniforme e reducionista. Essa estratégia se mostra irrealista a partir de um fundamento baseado no espetáculo de massa e discurso catártico, apelando para o emocionalismo de grupo. Porém a questão mais grave, pela ótica filosófica, é fazer do homem algo impotente e o apregoamento de um deus que determinou condições adversas, onde o homem é um impotente perante elas. Veremos, quando entramos no tópico da filosofia clínica, que ao homem está destinado optar por sua liberdade e tratamento de suas dificuldades e contradições, através do apoderamento racional de métodos filosóficos. Consideremos agora um pouco da proposta psicanalítica, tendo em mente que o homem é uma multiplicidade de fatores concretos e imateriais e que, por isso mesmo, é impróprio fragmentá-lo e circunscrevê-lo, aprisionando-o a esquemas que o apequenam e tiram-lhe o poder da autotransformação.

A PSICANÁLISE DA LIBIDO

   Outra proposta de abordagem e tratamento dos distúrbios subjetivos do homem contemporâneo encontra-se na Psicanálise. Esta é uma teoria bastante interessante. Seu fundador, Sigmund Freud, marca na história do estudo da psicologia uma revolução com seu conceito de subconsciente (id), enquanto fração ponderável e mais importante do universo psicológico do homem. Por ser uma teoria sistematizada, a psicanálise é complexa e, por isso, de extensa base teórica, despertando simpatizantes e detratores. Não é o caso aqui um aprofundamento e valoração de seu sistema. Porém, em função do escopo desse artigo, veremos pontos pertinentes para a reflexão dos casos que demandam a abordagem do universo subjetivo de pacientes em situações-limite.
    Se por um lado “Freud introduz um conceito radicalmente novo para abordar a sexualidade humana e sem a qual esta restaria inteiramente enigmática” (JORGE, 2000, p.20), por outro, reduz ontologicamente o homem e suas psicopatologias ao universo sexual. Numa perspectiva filosófica acerca do homem, este passo é extremamente reducionista em sua dimensão de indeterminadas possibilidades. Mesmo quando se trata de seus distúrbios. Diz Abbagnano:
  • [...] os processos psíquicos inconscientes são em boa parte dominados por tendências que podem ser qualificadas de “sexuais” no sentido restrito ou lato do termo. Este último pressuposto na realidade é a característica central da Psicanálise; que consiste essencialmente na tentativa de explicar a vida do homem (não só a pessoal ou individual, mas também a pública e social) recorrendo a uma única força, que é o instinto sexual ou libido [...] (ABBAGNANO, 2007, p. 948). 

Também, a propósito da Psicanálise, afirma Chauí (2008, p. 170):
  • A vida psíquica dá sentido e coloração afetivo-sexual a todos os objetos e a todas as pessoas que nos rodeiam e entre os quais vivemos. Por isso, sem que saibamos por que, desejamos e amamos certas coisas e pessoas, odiamos e tememos outras. 

    Sem cair no engano de limitar toda a importância e contribuição da Psicanálise para a compreensão teórica do universo psicológico humano, quando se trata de indivíduos, singulares, não é possível circunscrevê-lo, como força intrínseca, apenas pela libido. Tal concepção é insuficiente para expressar e tratar todo o espectro de possibilidades e situações de angústia vivenciadas pelo homem. Também aqui é pertinente reforçar que a Psicanálise contribui com importantes investigações do que venha a ser o homem psicológico. Os conceitos de pulsão, libido, recalque, traumas, divisão da estrutura mental em id, ego e superego, entre outros conteúdos da mente são experiências valiosas em que a Filosofia tem prestado atenção, como possibilidade de aprofundamento de certa ontologia humana. Porém, veremos que a Filosofia Clínica toma o homem em um horizonte que extrapola a circunscrição da Psicanálise e catarse religiosa, quando visa instrumentalizá-lo, legando-lhe autonomia no trato com suas questões de fragilidade existencial.

A FILOSOFIA COMO INSTRUMENTO PSICOTERÁPICO

    Vejamos, agora, a proposição da Filosofia Clínica para a compreensão do homem e suas questões existenciais. A Filosofia Clínica, assim nomeada, tem como responsável pelo seu surgimento o filósofo gaúcho Lúcio Packter. Packter, com formação em medicina, funda a clínica filosófica em 1994. Sua inspiração surge com o entendimento de que as psicoterapias psicologizantes eram insuficientes para tratar o multifacetado homem da atualidade e seu complexo mundo psicoemocional. Em suas viagens ele encontra na Holanda a experiência de “filósofos consultores”, que o inspira a criar seu método, porém bastante diferente daquele praticado na Europa.
    O uso do conhecimento filosófico nas problemáticas cotidianas sempre fora usual, desde os primórdios da filosofia: “Assim como realmente a medicina em nada beneficia, se não liberta dos males do corpo, assim também sucede com a filosofia, se não liberta das paixões da alma” (EPICURO, 2005, p. 98). Na filosofia acadêmica se ensina que um dos propósitos nobre da filosofia é fazer da vida uma experiência boa e feliz. A aventura da filosofia já percorreu aproximadamente XVI séculos de produção de profundas reflexões sobre o universo e a vida. Um conceito basilar em filosofia encontra-se na afirmação de Protágoras, o qual afirma que o “homem é a medida de todas as coisas”. Assim sendo, Packter recolheu conceitos entesourados ao longo da saga da Filosofia para embasar seu método.
    Veremos, logo adiante, todo o processo da clínica por ele elaborada. Embora Packter afirme que por ser ela uma proposta recente, está aberta para toda e qualquer contribuição que possa aprimorá-la e torná-la mais eficaz em seus resultados. Afinal, a natureza da filosofia é o pensamento crítico radical, o que a faz, por isso mesmo, ser mãe de todas as ciências, que estão em permanente aprimoramento e transformação de seus paradigmas que venham a elucidar anomalias não alcançadas pela teoria naquele momento. Assim, a filosofia clínica propõe auxiliar as pessoas com dificuldades em lidar com suas situações extremas, sugerindo o caminho da reflexão embasada em conteúdos filosóficos. Espera-se que os instrumentos da filosofia, por pensar o mundo, o homem e seus problemas, sejam um instrumental poderoso enquanto equipamento disponível para o homem que vivencia uma pós-modernidade em ebulição de contradições momentosas.
    Na clínica, o ponto de partida é o próprio partilhante, cliente da clínica filosófica, que chega ali trazendo questões de diversas naturezas, pessoal, familiar, social, existencial entre outras inúmeras. O diferencial primário da Filosofia Clínica, em comparação àquelas demais terapias supracitadas, é não tratar o partilhante como um doente, muito embora o terapeuta filosófico deva fazer uma anamnese do partilhante, para descartar qualquer patologia que necessite de cuidados médicos especializados. Mesmo em casos assim, é possível um acompanhamento interdisciplinar em que o filósofo clínico esteja atuando como suporte. Define a presidente da ANFIC (Associação Nacional de Filosofia Clínica), Aiub (2010, p. 24):
  • A restauração do equilíbrio, que era o papel do médico, exigia o conhecimento, não apenas de aspectos corporais do paciente, mas deste na totalidade de seus aspectos, incluindo os hábitos, as paixões, a vida cotidiana, os contextos do entorno natural e social. Hoje, quando definimos saúde como completo bem-estar biopsicossocial, nos aproximamos da perspectiva de totalidade.

    Assim, como já dito, “o foco da atenção não está no problema, no trauma, na doença, mas no indivíduo que é esse partilhante.” (AIUB, 2004, p. 26). Outro ponto interessante é a concepção de representação que o partilhante faz de seu mundo. Esse conceito é basilar para se entender o cliente em sua dimensão, como ele “representa” o mundo. É um termo tomado, como se vê, de Schopenhauer descrito em sua obra o Mundo como vontade e Representação, que, numa síntese, define o mundo como representação para a percepção que o indivíduo dele faz. Outro fundamento tirado da Filosofia é a fenomenologia, por se tratar de entender o indivíduo a partir de sua relação com o mundo e como ele se apresenta para o cliente enquanto fenômeno singular.
   Nenhuma escola filosófica é privilegiada em detrimento de outra, cada caso, por ser ímpar, tem uma abordagem exclusiva, que só o lidar clínico apontará qual ferramenta será mais eficaz para cada caso. Por exemplo, o existencialismo, com suas questões sobre a afirmação de que é o sujeito, ele mesmo, senhor de seu destino, pode ser uma revelação valiosa para um partilhante, porém não se aplicar a outra necessidade de enfrentamento de angústias. O que se procura é adequar à necessidade em função do vasto repertório que as diferentes visões filosóficas dispõem. Consideremos, então, o curso da rotina da clínica filosófica e seu instrumental central disponível.
    Já vimos que não se toma o partilhante como “doente”, porém alguém que traz uma dificuldade, um sofrimento subjetivo, real ou imaginário, que vem em busca de auxílio e compreensão de seu drama. Essa compreensão é possível através do que Packter chama de inter-seção, termo tirado da teoria dos conjuntos de George Cantor, aquela região em que duas representações do mundo (partilhante e filósofo clínico) encontram identidades. O filósofo procurará, a partir da interseção, angariar a confiança do partilhante, tão necessária para que se possa estabelecer o processo de recuperação da autonomia do consulente. É possível que essa interseção não se dê, ou por limitação do partilhante ou mesmo da parte do filósofo. Como não se considera como doença as questões, é possível que uma determinada situação do partilhante seja difícil para o filósofo, naquele momento, elaborar, por conta de algumas questões íntimas suas. Nesse caso, é aconselhável transferir o tratando para um outro profissional que lhe auxilie.
    Na prática clínica é recomendável a mínima interferência quando se está fazendo a historicidade do partilhante. Essa interferência, quando necessária para evitar distanciamento inoportuno, é conhecida como agendamentos. Os agendamentos, interferências, são um aspecto delicado no processo, pois o filósofo precisa evitar “conduzir” tendenciosamente a consulta; só se faz necessário para manter uma coerência e evitar dispersão da sessão. Seja qual for a dificuldade, assunto imediato, que levou o indivíduo a procurar a clínica filosófica, o primeiro passo, depois das formalidades de queixa inicial e fichamento, o momento da clínica se estabelece pelo levantamento de todo o contexto existencial do partilhante, até onde for possível. É a historicidade, pela qual se relata toda a vida pregressa, desde até sua memória mais remota. Claro que são processos de idas e vindas, atalhos e recortes, omissões e fantasias. Porém, ao evoluir as sessões, sempre se poderá retomar algo que ficou esquecido e agora veio à tona, aquela parte que se omitiu e que pelo aumento da interseção há maior confiança em se relatar.
    Lembrando que é o partilhante quem sempre irá estar de posse de todo o processo; conquanto seus estágios sejam definidos, não são rígidos, podendo ser alterados caso a caso. O momento da historicidade é fundamental por conta de alguns aspectos necessários para o processo. Por se tratar de uma abordagem filosófica do “problema”, se faz necessária sua contextualização, gênese, história. Também, pela historicidade, o assunto imediato pode ser desvelado diferentemente do inicial, que não estava em tela para o partilhante antes de sua narra-tiva. Pela narrativa é possível descobrir que o âmago da questão era outro aspecto insuspeito. É possível que a terapia já se resolva nessa fase. Com a historicidade, o filósofo faz observações existenciais da pessoa, que serão dados para consideração com outras partes do sistema da terapia, quais são: exames categorias, estrutura de pensamento e submodos. Veremos cada um deles oportunamente.
    A narrativa histórica também é um momento importantíssimo para o filósofo fazer suas anotações e observações pertinentes, que serão dados fundamentais no trato de superação do consulente. Por exemplo, observação dos jogos de linguagem que a pessoa faz uso (aí cabe os estudos de Wittgenstein, entre outros, sobre a linguagem). Como é comum que sempre se reconte a história de vida nas sessões, o filósofo enseja para proceder ao enraizamento, a relação que já se poderá fazer com os eixos – exames categoriais, estrutura de pensamento e submodos.
    Os exames categorias são divididos em: Assunto (Imediato e Último), Circunstância, Lugar, Tempo e Relação. Resume Aiub (2004, p. 64):
  • Os Exames Categoriais têm como objetivo localizar existencialmente a pessoa, ou seja, conhecer o universo no qual ela está inserida, a realidade na qual vive: sociedade, cultura, educação, linguagem, hábitos, valores, enfim, todas as referências e seu contexto. 

     A categoria Assunto Imediato diz respeito à queixa que levou o consulente à clínica, já o Assunto Último será a questão a ser trabalhada pelo filósofo, conforme o momento da historicidade revele outras questões, podendo coincidir qual a inicial. A categoria Circunstância, como o nome sugere, define toda a vivência e ambiente sociocultural. Diz bastante sobre o sujeito. O que revela a vivência sensorial, como a pessoa se percebe, a espacialidade interior, será definida pela categoria Lugar. Esta categoria é muito importante, pois o corpo concentra muita eloquência das vivências experenciadas. Tempo é a categoria em que serão vistos a lógica e sucessão da história do partilhante. Cronológico e subjetivo são tempos, que para a subjetividade tecem a existência em toda sua complexidade e representatividade do que é o sujeito. A coerência existencial muito se ancora nesse aspecto. Aristóteles, Agostinho e Bergson, este brilhantemente fala do tempo de vida como superior ao tempo mecânico e que a ciência não daria conta de descrevê-lo, são pensadores que muito tem a contribuir para um entendimento de base filosófica sobre este aspecto da vida. Por fim, a categoria Relação. Essa categoria irá mostrar em que grau e qualidade o sujeito lida com as coisas, outros sujeitos, enfim, o mundo subjetivo e objetivo.
     Com os Exames Categoriais e o recontar da história da pessoa faz-se a relação com as categorias num processo nomeado de Enraizamento. Agora é possível compor a Estrutura de Pensamento (EP) do partilhante. Esta é exatamente o que caracteriza a pessoa enquanto indivíduo, como soma de todas suas experiências. A Estrutura de Pensamento possui trinta tópicos. Podendo receber contribuições de mais tópicos conforme esse método psicoterápico evolui. Estão assim nomeados: 1. Como o mundo parece (fenomenologicamente), 2. O que acha de si mesmo, 3. Sensorial e abstrato, 4. Emoções, 5. Pré-juízos, 6. Termos agendados no intelecto, 7. Termos: universal, particular e singular, 8. Termos: unívoco e equívoco, Discurso: completo e incompleto, 10. Estruturação de raciocínio, 11. Busca, 12. Paixões dominantes, 13. Comportamento e função, 14. Especialidade: (inversão, recíproca de inversão, deslocamento curto, deslocamento longo), 15. Semiose, 16. Significado, 17. Padrão e armadilha conceitual, 18, Axiologia, 19. Tópico de singularidade existencial, 20. Epistemologia, 21. Expressividade, 22. Papel existencial, 23. Ação, 24. Hipótese, 25. Experimentação, 26. Princípios de verdade, 27. Análise da estrutura, 28. Interseções de estruturas de pensamento, 29. Dados de matemática simbólica, 30. Autogenia.
     Não analisaremos cada um em seus pormenores. O que será interessante frisar é que para cada um encontramos um filósofo que tenha tratado desse aspecto. Por exemplo, o tópico 2 (O que acha de si mesmo) tem fundamentação teórica em Protágoras, Schopenhauer, na fenomenologia de Husserl e Merleau-Ponty. Nas palavras de Aiub:
  • Em Sensorial e Abstrato, observamos todas as referências às sensações e às abstrações, e, principalmente, como estas se relacionam entre si [...] Encontramos casos de pessoas valorizam excessivamente o corpo, dando pouca atenção aos dados abstratos. [...] A fundamentação do tópico está, principalmente, em Locke, Berkeley, Hume, Descartes, Kant e Merleau-Ponty. (AIUB, 2004, p. 84).

    Também, Espinosa e Pascal fundamentam o tópico Emoções. Popper, Kuhn e Gadamer pode-riam fundamentar o tópico Pré-Juízos, por se tratar de verdades a priori. Assim, temos um cabedal de instrumentos filosóficos, com que poderemos abordar as questões do homem e seu tempo pelo viés da filosofia, o que é de grande valor e de sólidos argumentos das questões aflitivas e interpretativas para que se possa ter domínio da realidade e uma relação mais tratável sobre ela.

     Vejamos agora o terceiro eixo, ao Submodos. Packter elencou 32, porém, assim como nos tópicos da Estrutura de Pensamento, aqui também há uma flexibilidade, podendo, conforme se aprimore e aprofunde a teoria, acrescentar outros pertinentes. Oportuno dizer que os Submodos atuarão em paralelo à Estrutura de Pensamento e por eles o consulente transita ao lidar com suas questões. Também nota-se que o indivíduo sempre usará cada modo de agir associado a outros, com maior ou menor grau em cada caso específico. Essa mescla de característica, como se pode ver, possibilita uma infinidade de aspectos singulares que perfilam o indivíduo. É esse ponto da clínica, quando se tem os três eixos integrados pela historicidade, que o filósofo clínico traçará o Planejamento Clínico. Então, à Tábua de Submodos: 1. Em direção ao termo singular, 2. Em direção ao termo universal, 3. Em direção às sensações, 4. Em direção às idéias complexas, 5. Esquema resolutivo, 6. Em direção ao desfecho, 7. Inversão, 8. Recíproca de inversão, 9. Divisão, 10. Argumentação derivas, 11. Atalho, 12. Busca, 13. Deslocamento curto, 14. Deslocamento longo, 15. Adição, 16. Roteirizar, 17. Percepcionar, 18. Esteticidade, 19. Esteticidade seletiva, 20. Tradução, 21. Informação dirigida, 22. Vice-conceito, 23. Intuição, 24. Retroação, 25. Intencionalidade dirigida, 26. Axiologia, 27. Autogenia, 28. Epistemologia, 29. Reconstrução, 30. Análise indireta, 31. Expressividade, 32. Princípio de verdade.

     Os Submodos têm dupla características: dizem respeito ao perfil do tratando e são ferramentas usadas para o tratamento do partilhante. O filósofo clínico calculará qual Submodo melhor será útil na questão de seu paciente. Para entender esse funcionamento Aiub (2004, p. 97), em suas palavras, ilumina melhor:
                                                    
  • Em Direção às Sensações levará a atenção da pessoa para o sensorial, para o corpo e suas sensações. Direcionar a atenção do partilhante para o próprio corpo, para a sensação gerada por um objeto ou por uma situação. Para trazer a pessoa ao concreto, para redimensionar contextos ou choques na Estrutura de Pensamento, para propiciar conforto em situações traumáticas ou de crises, podemos utilizar esse Submodo, desde que adequado à EP [Estrutura de Pensamento]. Cabe lembrar que a adequação à EP é válida a qualquer Submodo. 

      Uma observação faz-se necessária: todo esse conjunto teórico nunca será rígido, pois cada indivíduo é singular. Por isso, os Submodos têm de estar sempre em harmonia com a Estrutura de Pensamento da pessoa. Packter (2003 apud AIUB, 2004, p. 111) esclarece até mesmo a propósito de sua metodologia que “A filosofia clínica é extremamente eclética, é uma grande colcha de retalhos na qual as escolas estão em conversação, não há uma primazia de uma escola em detrimento de outra, você não vai pegar o nominalismo e deixar o empirismo em terceiro plano, não vai pegar o logicismo e deixar a epistemologia no quinto plano, isso não existe. [...]”.
      Essa terapia, dizem seus profissionais, é perfeitamente aplicada não só a indivíduos, mas a terapia de grupo, familiar, hospitalar, na educação e em sociedades como auxílio ao Terceiro Setor. É regida por um Código de Ética que respeita o princípio de humanidade e ao outro. É obvio que por ser recente, a clínica filosófica tem suas fragilidades que precisam de aprimoramentos, assim como toda ciência humana. O que permanece de interessante nessa abordagem é o valor de trazer a filosofia para um cenário que lhe é pertinente: auxiliar o homem a transformar sua existência numa experiência mais humana, boa e feliz!

CONCLUSÃO

      Enfim, o ser humano sempre lidou com angústias existenciais que o levaram a produzir saberes que lhe mitigassem seus sofrimentos. Buscou, e têm buscado, em diversas fontes, tanto míticas quanto as produzidas pelo uso da razão lógica e sistemática, fundamentos e compreensão do que é sua natureza e seu meio, bem como funcionam, numa tentativa de dominar forças intrínsecas e extrínsecas para obter uma vida melhor e mais significativa. Mor-mente, em nossa época moderna ou pós-moderna, pela complexidade da sociedade pós-industrial, essas questões têm recrudescido em conflitos e desarmonias entre existência subjetiva e objetiva, compelindo a filosofia debruçar-se sobre esse tema tão caro para a humanidade, por conta do volume de sofrimento que pesa sobre todas as sociedades.
     Vimos que pela tentativa metafísica, entre outras proposições, que a religião de massa no Brasil tem um forte apelo para os dramas corriqueiros, por exemplo, os sofrimentos de saúde física e emocional e dificuldades econômicas. No entanto, pela análise dos discursos empregados pelos líderes espirituais, não se encontra efetivamente bases sólidas que devolvam ao suplicante sua qualidade de protagonista de sua vida. Há um paradoxo na lógica empregada entre finalidade espiritual, necessidade concreta dos que ali acorrem em busca de alívio e discurso das lideranças. A função precípua da religião é trazer “respostas” para as buscas espirituais, embora a vida terrena também esteja em certa medida ligada àquela; a grande maioria traz um drama de ordem imediata e concreta; a solução dada visa apenas uma catarse hipnotizadora e anestesiante. É clara a distância entre uma solução efetiva e o método e finalidade dados.
    A psicanálise, muito embora interessante em seus estudos da vida subjetiva, intelectiva do ser humano, baseia seus pressupostos em condições já dadas e formatadas, minimizando a consciência e superestimando o inconsciente. Chega a afirmar que não podemos nada sobre esta parte que mais tem a dizer sobre nós e nos caracterizam, segundo a psicanálise, deixando-nos, dessa maneira, impotentes sobre o protagonismo de nossas próprias vidas. A intencionalidade, nesse modelo, é um aspecto sem grande importância, o que arrefece toda a afirmação de que o homem pode reescrever suas forças intrínsecas, redirecionando-as conscientemente para seu projeto de vida e desiderato.
     A Filosofia Clínica, em contraste com as duas metodologias supracitadas, toma o sujeito como alguém que traz para a clínica um caso concreto e singular, que pertence só a ele mesmo, embora as causas possam ser de origem coletiva e de uma época sociocultural. O partilhante é considerado em suas questões específicas e concretas; sua consciência é valorizada e também a matéria prima a ser tratada e privilegiada, como componente vital do indivíduo. O conjunto teórico de ferramentas utilizadas são os melhores fundamentos filosóficos produzidos ao longo de séculos de pensamento radical e racional. Muitas escolas são utilizadas caso a caso, conforme as particularidades das situações-limite que traz o aflito. Mesmo o pensamento religioso e psicanalítico são, em proporção relativa, instrumentos de valor nos casos específicos.
    O filósofo clínico sempre se colocará como alguém semelhante ao seu partilhante, também ele na condição de partilhante. Coexistente em um mundo multiforme, porém representado de maneira peculiar a cada indivíduo, o filósofo clínico vê seu cliente como alguém que está ali em busca de se encontrar como ser único e que procura alguém que o entenda e caminhe com ele em buscar alívio das pressões porque passa. Diz Packter:
  • O filósofo clínico busca sentir a pessoa, o modo como toca, como olha, fala, como se movimenta, como se relaciona com o meio onde vive; o filósofo busca conhecer como esta pessoa está estruturada, quais os pré-juízos, emoções, paixões dominantes, papéis existenciais, entre outros dados, e como eles se relacionam entre eles mesmos e com o ambiente. [...], entenderá que aquela pessoa está estruturada de uma determinada forma e que por isso tende a funcionar de determinada maneira. (PACKTER, 1997, p. 2). 

    A Filosofia Clínica, consolidando-se, recebendo contribuições e estudos aprofundados, poderá ser seguramente ferramenta que vem resgatar uma das condições mais nobres da filosofia: fazer da vida uma experiência boa, feliz e fundamentada em valores superiores e coletivamente éticos.
ABSTRACT

In this paper will be presented to Clinical Philosophy and its importance in today's society. Being a nascent therapy in its methodology and theory, will be seen, in general, their tools and relationships with some aspects and philosophical concepts. Modern man is in a delta of options as to their fate and future, whether individually or planetary. These options are presented to it in a context of crisis and uncertainty that require a psycho temper its structure that it is not always equipped to meet this demand. Arise, often, subjective distress and suffering crippling. Other issues, of immediate order and idiosyncratic, as penalize and urgent solution. It is in this context that the proposed Clinical Philosophy, in the representation that the subject does the world, the philosophical radicalism, aid that could return to the subject autonomy and interior equipment with which he deals with in a reasonable context and himself. We will see, from a conceptual, two other options for the same look of extreme situations of man in his subjective and objective read: the foundations of psychoanalytic and proposed mass religion. This option of looking at psychoanalysis and mass religion aims at contrast, to demonstrate why the particular philosophy Clinic understands man as a whole and its singularities. At the end of this paper is expected to help open the Philosophy Clinic offers the field of psychotherapy, as well as provide an overview of your process that reveals how much of academic philosophy can be useful for a more humane society. This contribution is not only in the psychotherapy, but also in anthropology, as a set of characteristics peculiar to human beings will add up to a better understanding.

KEYWORDS

Clinical Philosophy; Situation limit; Psychotherapy; Philosophy

REFERÊNCIAS

ABBAGNANO, Nicola.
Dicionário de Filosofia. 5 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

AIUB, Monica. Como Ler a Filosofia Clínica: Prática da autonomia do pensamento. 2 ed. São Paulo: Paulus, 2010.

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CHAUI, Marilena. Convite à Filosofia. 13 ed. São Paulo: Ática, 2008.

EPICURO. Pensamentos. 2 Ed. São Paulo: Martin Claret, 2005.

JORGE, Marco Antonio Coutinho. Fundamentos da Psicanálise: De Freud a Lacan. 6 Ed. Rio de Janeiro. Zahar, 2011.

PACKTER, Lúcio. Filosofia Clínica: encarte da obra Filosofia Clínica – Propedêutica. Dis-ponível em: < http://www.filosofiaclinica.com.br/Filosofia_Clnica_-_Propedeutica.pdf>. A-cesso em: 18 abr. 2012

Comentários

  1. Olá, Bom dia

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  2. Eu entrei no seu site Roberto, adorei a sua iniciativa. Parabéns!

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